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Mestre do barroco mineiro, Aleijadinho ganha exposição no Museu de Arte de São Paulo

Artista e arquiteto nascido em Ouro Preto, Antônio Francisco Lisboa (1730-1814) é um dos grandes gênios da cultura nacional e representa, simbolicamente, referência do que se convencionou chamar de brasilidade. Sua obra, toda ela realizada em Minas Gerais ao fim do Ciclo do Ouro, tem sido estudada desde o século 19 e o material referente à sua vida e seu legado continua crescendo e provocando debates acalorados. Sua importância, no entanto, é incontestável.

A grande exposição Imagens do Aleijadinho, que será aberta nesta sexta-feira (9), no Museu de Arte de São Paulo (Masp), coloca em evidência o trabalho do mineiro para retomar e atualizar o debate desse mineiro que criou obras monumentais: projetou igrejas, talhou retábulos, portais de igrejas, altares e esculpiu diversas esculturas devocionais. A mostra no Masp se concentra nesta última, apresentando 38 obras de autoria de Aleijadinho ou a ele atribuída por diferentes fontes em períodos distintos.

Imagens do Aleijadinho tem a proposta de refletir o aspecto popular da obra do artista, inserindo-o no contexto cultural da época, mas também examina a construção do mito e de como ele se tornou um símbolo da cultura brasileira. Como complemento, a mostra apresenta documentos, fotografias, pinturas e esculturas que trazem o contexto histórico e os desdobramentos artísticos que reinterpretaram a obra do mineiro.

A coordenação da exposição e edição do catálogo foi realizada por Rodrigo Moura, curador-adjunto de arte brasileira do Masp. Moura destaca a dimensão popular que se espelha no fervor religioso da Vila Rica do século 18, que se traduz em santos humanizados, santos de procissão que são carregados pelos devotos, imagens extremamente comunicativas que constituem representações afetivas. “Essas imagens têm essa questão da religiosidade popular, da teatralização que o Barroco comporta, mas numa versão brasileira”, aponta.

A relação de proximidade entre as obras de Aleijadinho e a população são uma via de mão dupla, pois os traços mulatos, mestiços e até africanos são evidentes nas feições das esculturas do mestre. “O Aleijadinho é tido como essa grande figura da arte brasileira, que, de certa maneira inaugura um modelo de mestiçagem e mulatismo, essa ideia da incorporação do modelo europeu através do processo de formação cultural do país, e dessa importante presença africana no país, como elemento de fusão e transformação e alteração da arte europeia e, no caso do Aleijadinho, no contexto da colônia”, explica Moura a respeito do princípio que norteou a curadoria.

Antes disso, porém, os trabalhos do artista receberam várias interpretações a partir do século 19.
Há menções de estrangeiros, em diferentes relatos de viajantes, por exemplo, que observam as obras do Aleijadinho. Em todas elas, depois reiteradas por muitos intelectuais brasileiros, vê-se uma crítica às características distorcidas e primitivas das obras por não seguirem os modelos europeus. É a partir do texto de Rodrigo Bretas, de 1858 (leia trechos ao lado), que tem início um esforço maior para se compreender a obra e a figura do Aleijadinho.

Estudiosos passam então a valorizar a recriação, que incorpora traços próprios do ambiente que circunda o artista e reinventa, à sua maneira, as formas do Barroco europeu numa fusão de elementos, o que foi, mais tarde, ressaltado como espelho da mestiçagem cultural brasileira.

Esse mulatismo é, portanto, o elemento que cristaliza um tipo próprio do caldeirão de raças que constituiu a formação do povo brasileiro. Foi essa característica que serviu a tantos pesquisadores e artistas, sobretudo no Modernismo, a valorizar o Aleijadinho como figura de destaque da produção cultural nacional e o germe do que seria a identidade nacional. Nesse sentido, como destaca o texto de Moura no catálogo, “a arte do Aleijadinho é escolhida como estandarte para uma arte popular, contrária aos academicismos e elitismos”.

O curador afirma que “é inegável o abismo que existe entre o artista e sua figura construída ao longo dos séculos — entre o Aleijadinho imaginário e aquele artista que, de fato, criou essas obras”.  Para ele, essa construção é emblemática, pois espelha a própria história da arte brasileira, revelando as fragilidades de se constituir o que seria uma cronologia da produção artística nacional.

Moura observa a importância dos modernistas, principalmente nas figuras de Rodrigo Mello Franco de Andrade e Mário de Andrade – para valorizar o legado do Aleijadinho. O texto de Mário de Andrade, de 1928 (leia trechos ao lado), exalta o mineiro e suas criações. “O que os modernistas vão fazer é desconstruir a ideia de que o Aleijadinho era um deformador, um primitivo, para dizer que era uma coisa extremamente valorosa e serve para se pensar o Modernismo no Brasil e a realidade a partir de um modelo mestiço, híbrido, tardio, que não se encaixa nas cronologias da história da arte europeia, que tem outra referência, com contexto histórico específico”, diz Moura.

Na década de 1930, a qualidade artística, a autoria ou mesmo a existência do Aleijadinho foram questionadas.
“Falar de autoria e estilo, como é falado no século 20, é uma distorção, eram escolas, discípulos, artífices”, relativiza o curador. “Havia centenas de artífices trabalhando, com uma diversidade cultural muito grande, muitos negros e mestiços, negros alforriados, porque conquistavam esta habilidade e, por isso, este status diferente, e uma diversidade de saberes, uma contaminação muito grande nesse caldo de cultura.”

Esse questionamento mobiliza um esforço, capitaneado por Rodrigo Mello Franco de Andrade, fundador do Sphan (atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan) para encontrar fontes e provas, o que, segundo Moura, “de certa maneira, entroniza o Aleijadinho como um grande artista brasileiro”. A empreitada produziu diversos documentos, comparações estilísticas e toda uma bibliografia a respeito do artista.

Aleijadinho continua como uma grande fonte de polêmica. Para o curador, ele desperta afetos, tanto de um certo heroísmo como um desejo de desconstruí-lo”. “Há um interesse cíclico pelo Aleijadinho”, diz Moura, acrescentando a importância de se recuperar, com a exposição no Masp, a discussão sobre a obra desse artista e seu contexto. “Pode-se dizer que ele serve como uma chave de compreensão, entre muitas, da própria história da arte no continente, a ideia da mestiçagem, da fusão, da antropofagia antes de ser formulada, da mão e da cabeça africana operando no sistema colonial, tudo isso aparece na obra dele, como chave de leitura.”.