De todos os monstros incubados pelo nazismo, Josef Mengele (1911-1979) é um dos mais repugnantes. Médico brilhante, alistado na SS de Hitler, esteve em Auschwitz em 1943, onde estudou a morte de judeus e de comunistas, suas vísceras e suas estruturas químicas, com o objetivo de inventar o homem do futuro, geneticamente puro, que deveria substituir os “judeus sujos”, os ciganos, os idiotas, os nojentos que desgraçavam as democracias.
É o percurso desse homem, desse “demiurgo”, que Olivier Guez acompanha em La disparition de Josef Mengele (O desaparecimento de Josef Mengele), lançado na França. Foram três anos de pesquisas, entrevistas que Guez compartilha conosco na rocambolesca fuga de Mengele, depois da Segunda Guerra Mundial, pela Argentina, Paraguai e Brasil, onde morre misteriosamente em uma praia em 1979.
O trabalho de Guez percorre dois registros geralmente incompatíveis: o rigor de um livro de história e o movimento, a obscura beleza romanesca de uma tragédia. É muito bonito.
O livro começa em 1949, em Gênova, Itália. Um homem chamado Fritz Ulmann (serão muitos os pseudônimos de Mengele) embarca para a Argentina. Como é que ele escapou de ser pego, em 1945, com os outros criminosos nazistas? Acontece que Mengele é astuto: em 1938, ao se alistar na SS, ele recusou o número de identificação tatuado sob a axila. Então, quando os americanos o capturaram em 1945, eles o libertaram. Três anos de fuga tranquila.
Na Argentina, um oficial da alfândega abre as malas desse tal mecânico Fritz Ulmann. Uma delas contém seringas, frascos de sangue, placas, etc... Bagagem estranha. Mengele explica que em seus momentos de lazer é um biólogo amador. Em 2 de junho de 1949, começa seu longo percurso pela América do Sul.
PERÓN O primeiro ponto de parada é bem escolhido. A Argentina está nas mãos de Perón, que jamais escondeu a admiração por Hitler. Seu país é um Eldorado para os antigos nazistas. Mengele aproveita-se das inúmeras redes nazistas, mesmo que jamais revele sua verdadeira identidade. Ele é apenas um ex-nazista caçado em seu país. Encontra emprego como carpinteiro, no Bairro Vicente Lopez, e um alojamento miserável. Vive em constante terror. Todos os dias muda de itinerário. Não tem ligações com ninguém.
O livro de Guez nos faz reviver essa epopeia do mal e do infortúnio ao mesmo tempo. Há altos e baixos, mas sempre medo, e a convicção de que jamais cometeu qualquer mal. Ele atuou como um grande estudioso, para melhorar a raça ariana. E para restaurar a “dignidade” aos seres humanos.
O quanto tem de piedade de si mesmo, tanto é estranho esse sentimento quando se trata de outros. Especialmente das raças “inferiores”. Em Auschwitz, no abrigo das torres de vigia, ele se pavoneava com suas roupas dândi, botas, luvas, uniforme impecável, chapéu inclinado sobre o rosto: até os outros SS tinham medo dele.
Mengele não se poupava de esforços. Havia organizado um laboratório humano extravagante nas cabanas de enfermaria: anões, gigantes e gêmeos.
Durante dois anos, de maio de 1943 a janeiro de 1945, ele tinha sido o anjo da morte, o grande manda-chuva da tortura e dos assassinatos terapêuticos. Mas agora não passava que um rato aterrorizado escondido nos cantos obscuros de Buenos Aires.
Os dias se seguiam. Ao longo do tempo, e graças às redes nazistas que se dividiam em zonas na Argentina, Mengele consegue obter uma autorização de residência e um grande empréstimo bancário. Compra uma casa esplêndida, perto da antiga residência particular de Perón. O maldito se tranquiliza. A vida é linda, mas essa calma dura pouco. Um velho policial o localiza, prende e o libera por uma grande quantia de dinheiro. Mas o golpe passou perto e Mengele fica aterrorizado. Perde toda a calma e foge para o Paraguai, o país vizinho no qual reinou outro dos admiradores de Hitler, o general Alfredo Stroessner.
Nessa época, o Mossad, o terrível serviço de inteligência de Israel, rastreia na Argentina um outro criminoso, Adolf Eichmann, um dos principais responsáveis pela “solução final”, durante a guerra. Eichmann foi sequestrado pelos israelenses em 11 de maio de 1960. O chefe do Mossad quer conseguir um “duplo resultado” e pegar também Mengele. Mas este está no Paraguai. Confusão. O Mossad deve retornar a Israel com sua presa, Eichmann, cujo julgamento em breve deixará o mundo inteiro impressionado e repugnado.
A sorte, mais uma vez, protege o infame médico de Auschwitz. Mas o pesadelo não termina. O tirano treme, sofre. A tenaz aperta.
BRASIL A caçada recomeça. Depois da Argentina de Perón, depois do Paraguai de Stroessner, Mengele acaba por se fixar no Brasil. É levado para uma fazenda isolada nas proximidades de Nova Europa (SP). A esposa do fazendeiro, Gitta, descobre sua identidade. No quarto dele, Gitta encontra livros de Heidegger, Carl Schmidt, Novalis. Ele admite.
Os proprietários não estão impressionados. Húngaros, costumavam odiar os judeus. Ao mesmo tempo, têm medo de que a polícia descubra seu ninho. Todos se mudam para outra fazenda, em Serra Negra (SP). Mengele se envolve em um relacionamento patético com Gitta. Sua covardia chega ao delírio. Mora cercado por uma matilha de 15 cães, que treinou e que o escoltam por todos os lugares. Construiu um ponto de observação de seis metros de altura, sob o pretexto de observar pássaros. Passa seus dias carregando um grande par de binóculos Zeiss para checar todos os acessos. As noites são loucas: “Mergulhado na escuridão, Mengele ouve o concerto para violino de Schumann.”
Passam-se anos. Mengele muda mais uma vez. O senhorio, que não perdoou o caso com sua esposa Gitta, o instala em uma cabana de estuque em Eldorado, subúrbio empobrecido de São Paulo. E a queda se acentua.
Em janeiro de 1979, uma onda de calor atingiu o estado de São Paulo. Mengele é um homem velho, não aguenta mais. Está próximo da loucura. Vomita seus medos e ódios, amaldiçoa o Brasil, “um covil de negros e mulatos depravados, onde o lixo se acumula... Os bêbados do fim de semana e os transes da macumba... Não voltarei jamais... Que decadência... Como caí tão baixo?”
O FIM Bossert, seu senhorio, não o trairá. Nazista de baixo escalão, mas fanático, é racista e, acima de tudo, antissemita. Em um dia de muito calor, propõe a Mengele que venha se refrescar no oceano em sua casa de férias, em Bertioga. Em 7 de fevereiro de 1979, ao amanhecer, Mengele pega um ônibus com destino a Santos. Lá um comparsa o recebe e leva até a casa de praia. Mengele está prostrado. Assim que chega, arrasta-se até o quarto para uma soneca. Quando acorda, está exausto. Seus batimentos cardíacos estão irregulares. Luta com dificuldade para se levantar e vai à praia, onde Bossert acena com a mão. Mengele dá um passo à frente, atordoado, entre os gritos de crianças, o voo de pássaros e o vento de sal do mar. “Entra na água turquesa, a cabeça baixa e fica boiando, já não ouve o som, nem sente o corpo dolorido ou seus órgãos exaustos, quando seu pescoço de repente se enrijece, suas mandíbulas se fecham, seus membros e sua vida congelam... Mengele geme.” Ainda respira enquanto Bossert o leva de volta à praia, mas é com o cadáver que Bossert sai da água. No dia seguinte, é sepultado sob uma falsa identidade em Embu, na Região Metropolitana de São Paulo.
Passam-se alguns anos. A polícia confirma a verdadeira identidade do homem de Embu. É Mengele, por certo. O cadáver é exumado e entregue aos especialistas. Em 1992, o teste de DNA fornece seu veredicto: o cadáver do Embu é o de Josef Mengele.
Olivier Guez completa sua pesquisa. Escreve: “Que eles permaneçam longe de nós, dos sonhos e das quimeras da noite.” (Estadão Conteúdo)
TRECHO
“Entra na água turquesa, a cabeça baixa e fica boiando, já não ouve o som, nem sente o corpo dolorido ou seus órgãos exaustos, quando seu pescoço de repente se enrijece, suas mandíbulas se fecham, seus membros e sua vida congelam... Mengele geme.”
LA DISPARITION DE JOSEF MENGELE
De Olivier Guez
Editora Grasset/França
240 páginas
À venda no site Amazon por 18,50 euros