Peça que retrata Jesus como travesti nos dias atuais chega a BH

Deputado João Leite questiona o espetáculo e ataca mostra no Palácio das Artes

Pedro Galvão Landercy Hemerson
'Evangelho segundo Jesus, rainha do céu', que estreia hoje em BH, é estrelado por Renata Carvalho, atriz, travesti e ativista dos direitos da população transgênero - Foto: Lígia Jardim/Divulgação
A chegada do espetáculo O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu a Belo Horizonte, prevista para hoje, vem acompanhada da polêmica que marca a trajetória da obra. A peça integra a Ocupação Transarte, em cartaz na Funarte-MG, que tem objetivo de promover o encontro de artistas, ativistas e pesquisadores da cena cultural LGBT, além de celebrar a diversidade sexual. Escrito pela dramaturga transexual escocesa Jo Clifford e traduzido, montado e dirigido por Natalia Mallo, argentina radicada no Brasil, o monólogo traz uma releitura de Jesus, que vive como travesti nos dias atuais, o que já motivou reação e abre possibilidade de que o assunto vire nova batalha judicial na capital mineira, como já ocorreu em outros pontos do país.

A personagem é interpretada por Renata Carvalho, atriz, travesti e ativista dos direitos da população transgênero. Aos 35 anos, 20 deles dedicados às artes cênicas, Renata encena texto que resgata parábolas bíblicas, como a do filho pródigo, porém reconstruídas e recontextualizadas.

Polêmica ao propor um diálogo pouco usual com a religião cristã, a peça soma cerca de 70 apresentações e é alvo de reações desde que estreou, em agosto do ano passado. Em setembro, a Justiça chegou a proibi-la em Jundiaí, no interior de São Paulo, devido à pressão de grupos religiosos. Na terça-feira, liminar que impedia sessões no Sesc local foi cassada. Em Porto Alegre houve outra tentativa de impedir o espetáculo, negada pela Justiça.

Em Minas, a peça entrou na mira do deputado João Leite (PSDB), um dos líderes da bancada evangélica na Assembleia Legislativa. Candidato derrotado nas últimas eleições municipais em BH, ele promete liderar ofensiva junto ao Ministério Público contra a peça.
“Já busquei a Procuradoria, juntamos todos os documentos para garantir o direito das pessoas de ter uma religião e de ter seu livro sagrado respeitados. Vamos usar os meios legais, não faremos explosões e agressões. Tenho a responsabilidade de garantir às pessoas que sua religião, seu líder e o livro que conduz sua fé sejam respeitados”, disse o parlamentar ao Estado de Minas.

Classificando a obra como “desmoralização da vida de Jesus e preconceito contra a fé da maioria das pessoas no Brasil”, o parlamentar disse que, com outros parlamentares, não só da bancada evangélica, se prepara para questionar o uso de dinheiro público, por meio de incentivos fiscais, no patrocínio da peça. “Com base no artigo 208 do Código Penal, pelo escarnio da fé cristã, iríamos representar judicialmente, mas a sociedade civil já havia entrado com um pedido de liminar contra a peça. Porém, vamos ao MP questionar esse vilipêndio à fé cristã”, afirmou o deputado.


ESTIGMA Já a diretora Natália Mallo sustenta que sua proposta é justamente a reflexão sobre tolerância e respeito à diversidade. “Esse julgamento, sem conhecer a peça, revela muito da transfobia e do preconceito presentes na sociedade. É um julgamento baseado no fato de termos uma travesti em cena. A identidade travesti é tão estigmatizada que, mesmo sem conhecer o trabalho, conclui-se que é uma difamação, uma ofensa, uma chacota, ou que é sexualizado. Porém, o trabalho não tem nada disso, vem de um estudo profundo dos evangelhos na tentativa ficcional de resgatar uma essência do questionamento sobre a nossa capacidade de dar a mão, de amar o próximo, de ser solidário e de olhar para o diferente com empatia e disposição para o diálogo”, explica.

Natália Mallo rechaça as acusações de tentativa de desmoralizar a religião. “Perguntam-nos por que achamos que Jesus era travesti. Mas não é isso, nós apenas imaginamos como seria. Pior é a agenda política, que cria um fato por semana. Primeiro, o Queermuseu, depois a nossa peça e a performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Inventam uma narrativa sobre um fato para criar o inimigo que deve ser combatido como ameaça às nossas crianças, tentando arrebanhar adeptos por meio desse discurso, impulsionado pelas mídias sociais”, diz ela.

O deputado João Leite rebate os argumentos de Natália e reforça que defenderá a religião na Justiça. “Não sou contra manifestações artísticas, essa peça não é manifestação artística. Ela não está promovendo nada de tolerância, é intolerante ao ferir dessa maneira a maior liderança de uma religião. Ela incorre em crime. Isso é crime, isso é intolerância com a fé da maioria das pessoas de Minas Gerais. Sou um guardião da população de Minas Gerais, e isso vai ficar provado na Justiça”, garante.

Em meio a protestos e ameaças, a montagem tem lotado teatros, diz a produção. “Estamos preparadas para qualquer tipo de ofensiva, que vem pelo judicial, pela difamação... Mas estamos bem amparadas juridicamente e temos um grande apoio do público. Acho que vai lotar em BH. A gente espera que corra tudo bem e, principalmente, que se possa dialogar sobre a nossa proposta”, afirma Natalia Mallo.
A diretora lembra que a versão original, escrita e protagonizada por Jo Clifford, ficou em cartaz – sem protesto – na edição de 2016 do Festival Internacional do Teatro de Belo Horizonte (FIT-BH).
 
Exposição questionada
 
 
 Outro alvo do deputado estadual João Leite (PSDB) é a exposição Faça você mesmo sua Capela Sistina, do artista plástico Pedro Moraleida (1977-1999), em cartaz desde o início de setembro na Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard da Fundação Clóvis Salgado. “Tem uma exposição no Palácio das Artes claramente com orientação ao estupro. Todos passam (ali) – crianças e adolescentes veem aquilo. Essa classe, que se diz artística, está enterrando o Estatuto da Criança e do Adolescente em Minas. Estamos unidos contra o uso de um espaço público, como o Palácio das Artes, para promover orientação até para o estupro, como é muito claro nas obras que estão lá”, afirma.

A mostra foi alvo também do vereador Jair Di Gregorio (PP), que publicou um vídeo em seu perfil no Facebook criticando a exposição. Nas imagens, Gregorio aparece em frente ao Palácio das Artes, condenando as obras de Moraleida e responsabilizando o secretário municipal de Cultura, Juca Ferreira, por “permitir” a exposição. Porém, o Palácio das Artes não é gerido pelo município, mas pelo governo estadual. Na Câmara da capital, um grupo de parlamentares também ameaça abrir uma ofensiva judicial contra a exposição.

Exposição no Palácio das Artes mostra a obra do artista plástico Pedro Moraleida, conhecido por relacionar em seu trabalho temas como religião e sexo - Foto: Jair Amaral/EM/D.A PRESS - 31/8/17
Morto precocemente aos 22 anos, Moraleida tem o trabalho conhecido por misturar sexo e religião, entre outras dualidades. Em nota, a Fundação Clóvis Salgado defendeu a mostra. “Mesmo com a limitação imposta na entrada da galeria pela placa indicativa desaconselhando a visitação para menores de 18 anos, a exposição recebeu neste primeiro mês quase 6 mil visitantes, confirmando o grande interesse do público”, afirma o texto.

“A fundação realiza a exposição com mais de 160 obras, entre pinturas, desenhos e objetos, no ano em que a obra de Moraleida atinge sua maioridade e o artista completaria 40 anos. Nestes 18 anos, a obra de Pedro Moraleida adquiriu envergadura suficiente para ser exposta em países da América do Norte, Europa e Ásia. Além das exposições realizadas em Belo Horizonte – no então desativado Hospital São Tarcísio, hoje Centro de Arte Popular Cemig (2002), no Palácio das Artes (2002), no Museu da Pampulha (2003) e na Galeria Mama/Cadela (2015) –, suas obras foram expostas em Lyon, Dubai, Berlim e no Canadá”, diz a nota.

“Mais uma vez, a Fundação Clóvis Salgado reafirma sua vocação pública ao oferecer seus espaços expositivos para inquietações e reflexões artísticas e divulgar a produção das artes visuais mineiras, campo no qual tem alcançado destaque histórico”, conclui o comunicado. 
 
A peça

O evangelho segundo Jesus, rainha do céu

Quinta-feira (5/10), às 20h 
Sexta-feira (6/10), às 20h 
Sábado (7/10), às 20h 
Domingo (8/10), às 19h

Funarte
Rua Januária, 68, Centro de BH

Ingressos: R$ 20 (inteira) 
e R$ 10 (meia). Entrada franca para o público trans
Classificação: 16 anos
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