
Início dos anos 1960. Cidade de Nova York. Um jovem franzino, branquelo, caracóis no cabelo, recém-saído dos seus 18 anos, conversa com o relações-públicas de um pequeno selo de discos, que pretende lançar algumas de suas canções folk. O sujeito faz perguntas sobre seu passado.
– Como veio parar em Nova York?
– Ah... vim no vagão de carga de um trem, direto do Meio Oeste.
– Uau! Junto com a carga?
– Sim!
– E... já teve outros trabalhos?
– Sim, trabalhei numa padaria e também na construção civil.
– Construção civil? Onde?
– Em Detroit!
– E sua família, onde está?
– Não sei, não tenho família, nunca mais os vi.
As respostas saem suaves, convictas, sem emoção. O outro nem suspeita. Mas é tudo mentira. Nada daquilo aconteceu. O jovem Robert Allen Zimmerman, filho de pais remediados e judeus, nunca andou mais de uns poucos quilômetros em trens de carga, por diversão, na sua própria cidade natal, Duluth, nos confins do Minnesota, Meio Oeste americano.
Mas a cena é forte, tanto que foi reproduzida na biografia surrealista de Dylan para o cinema, I'm not there, de Todd Haynes. O diálogo acima está no livro autobiográfico (na realidade, uma espécie de memoir), Crônicas – volume um, lançado em 2005 pela Planeta e que, depois do anúncio do Nobel no fim do ano passado, acaba de ser relançado pela mesma editora.
Sim: Bob Dylan, o poeta, o trovador, o cantor pop, venceu o Nobel de Literatura de 2016 . Muitos catedráticos, letrados torceram o nariz. “Mas isso é literatura?” Não houve unanimidade. Outros consideraram o prêmio uma redenção para o Nobel, que vinha perdendo o prestígio.
Uma coisa é fato. Se Dylan ganhou a láurea máxima das letras, não foi por causa desse Crônicas. Tampouco foi por seu único romance, Tarântula (recebido com frieza simpática pela crítica) e que também será relançado pela Planeta. Dylan venceu por um punhado, uma centena e meia talvez, de canções folk, pop, profundas e majestosas. Esse amontoado de versos – ora surrealistas, ora impressionistas, ora crônicas sagazes de seu tempo e de eras passadas – mudaram o mundo. Portanto, sim, melhor para o Nobel.
O livro percorre basicamente três momentos da vida de Dylan: sua chegada a Nova York, fugindo de uma vida anônima e previsível no interior; o momento pós-fama, em Woodstock, onde tinha uma casa de campo frequentemente invadida por hippies e doidões de todo o tipo, o que quase o levou à loucura; e memórias de sua infância em Duluth.
A primeira parte, o encontro com a cena folk do Village em Nova York, é a mais interessante. Mostra a formação intelectual do artista, suas referências musicais (Woody Guthrie, Hank Williams, Roy Orbison), literárias e a busca eterna por uma identidade elaborada, em contraposição à que foi herdada pelos pais, judeus conservadores. Aliás, interessante dizer isso, em uma época (início de ano) em que as redes sociais estão cheias de pessoas fazendo publicidade da “reinvenção” de suas vidas, vale ressaltar: Dylan nunca usaria o verbo "reinventar" . Ele ia direto ao ponto. Sua vida foi inventada por sua mente magnífica, um cavalo selvagem da criação. “Reinventar” é para os fracos.
Guitarras elétricas
Há outras biografias de Bob Dylan, mas aqui, escrito por ele, o texto revela o que os iniciados já sabiam. O Dylan político, líder de esquerda, nunca existiu. É preciso dizer, Dylan não é Eduardo Suplicy recitando Blowin in the wind no Congresso. Nunca foi, nem quis ser. Dylan real é o que tocou com guitarras elétricas (o que era proibido) no Festival Folk de Newport, em 1965, sendo xingado e tendo seus cabos cortados pelo antigos brothers folksters do Greenwich Village, como Pete Seeger. Em outro show da turnê, o ofenderam com o nome de um judeu, “Judas”, traidor. Aquilo foi uma caixa de Pandora, não tinha volta. O mundo não seria o mesmo.
Do ponto de vista “literário”, este Crônicas tem estilo fluido, com detalhadas descrições, em um movimento que se pretende musical (bebop?), livre, com a influência de bolso de um dos seus livros de cabeceira quando jovem, On the road, do beatnik Jack Kerouac (ele também adorava Ginsberg, Ferlinghetti, Corso e achava Faulkner algo incompreensível).
Há muitas descrições de pessoas, ambientes, às vezes sem maiores impactos, numa leveza que pretende passar uma transcendência, um tempo de vida, o zeitgeist. Ele perambula, ainda pobre, pelas casas de seus amigos em NY, como o cantor Dave van Ronk. Vai a bibliotecas públicas, descobre histórias macabras da Guerra de Secessão em jornais de época, lê a Bíblia, lê os gregos, os clássicos (Rousseau, Maquiavel, Voltaire), dando corpo ao que seria de fato sua obra: canções longas, emocionantes, que traduzem o sentido da vida de uma forma que os “normais”, os não escritores, não conseguem. Enfim, literatura.
A primeira parte do livro, o encontro com a cena folk do Village em Nova York, é a mais interessante. Mostra a formação intelectual do artista, suas referências musicais (Woody Guthrie, Hank Williams, Roy Orbison), literárias e a busca eterna por uma identidade elaborada, em contraposição à que foi herdada pelos pais, judeus conservadores
TRECHO
A bossa e o folk
"Artistas como João Gilberto, Roberto Menescal e Carlos Lyra estavam libertando-se do samba infestado de percussão e criando uma nova forma de música brasileira com modulações melódicas. Eles a chamavam de bossa nova. O que fiz para me libertar do folk foi colocar imagens e atitudes novas, usar fraseados que capturavam a atenção e metáforas combinadas com um conjunto novo de costumes que evoluíam para algo diferente, que não fora ouvido antes".
(Crônicas – volume um, de Bob Dylan)
Crônicas – Volume Um - Foto:
De Bob Dylan
Editora Planeta
328 páginas
R$ 41,90