
“Em nenhum momento tive tempo de me perguntar: minhas canções são literatura?”. Sem se abalar dos Estados Unidos para Estocolmo, no último dia 10, onde lhe seria entregue o Prêmio Nobel de Literatura, Bob Dylan enviou por escrito o seu agradecimento. Coube à cantora Patti Smith representá-lo. As palavras do compositor relatam certa surpresa com a decisão da Academia Sueca, mas também revelam um pouco do fazer artístico. As dúvidas de Dylan sobre o próprio ofício são compartilhadas por muitos que se aventuram no universo das artes.
Artistas que se dedicam à dança, ao teatro e à literatura revelaram ao Estado de Minas as perguntas que fizeram – e fazem – a si mesmos ao longo da carreira. Diretora do grupo Primeiro Ato, a bailarina e coreógrafa Suely Machado se guiou pela intuição. “Muitas vezes, tive atitudes que não sabia o porquê de tê-las tomado”, conta. “Desde a infância, o corpo, de forma sensorial, apontava para onde seguir.”
A intuição dava respostas que surpreendiam a jovem Suely.
Desde que começou a dançar, Suely se pergunta: “Como o que faço atinge as pessoas?”. Diante dessa indagação, entendeu que só poderia tomar um caminho. “Não consigo calar o que não pode ser calado dentro de mim”, diz. Ela tem ampla consciência de que a dança não é criação solo, mas também sabe que algumas respostas devem partir dela mesma. “O que é fundamental para mim? Se não dançar, eu morro. A dança é a minha maneira de comunicar com o mundo.”
Com o tempo, veio a convicção de que algo tão vital para Suely poderia ser importante também para as outras pessoas. “A poética da vida nos faz perceber o quanto a delicadeza, a sensibilidade e a generosidade são ferramentas transformadoras”, diz.
Uma das maiores realizações do artista é descobrir que sua obra foi divisor de águas para alguém. “O verdadeiro artista questiona o tempo todo se o que faz é importante. Pergunto-me: para que serve algo a que dediquei toda a minha vida?”, diz Suely. Porém, não há certezas nesse campo.
FRONTEIRAS O Nobel de Literatura conquistado por Bob Dylan, que não é escritor profissional, demonstra o que os criadores intuem: não há fronteiras nas artes ou, se existem, elas se diluem facilmente. “Nunca consegui separar qual era a hora da dança, qual era a hora da poesia, a do teatro e a da literatura. Quando conseguiria alcançar a poética da vida?”, afirma Suely.
O mesmo ocorre com Eduardo Moreira, ator do Grupo Galpão, que leva a música para a dramaturgia. Ele canta, toca clarinete e é acordeonista – isso tudo o ajuda a ampliar as fronteiras do teatro. O questionamento faz parte do ethos do artista, observa. “As perguntas vêm o tempo inteiro. Isso é inevitável no processo artístico, as crises e indagações são constantes”, afirma.
Com 35 anos de profissão e várias contribuições emblemáticas para o teatro brasileiro, Eduardo Moreira nunca deixou de se perguntar se estava no caminho certo. Questionamentos sobre o trabalho e o próprio talento estão sempre à espreita, apesar dos aplausos, prêmios e críticas favoráveis.
O autoquestionamento, muitas vezes, resulta em algo novo para o artista. Expandir fronteiras foi o que o instrumentista argentino Rufo Herrera mais fez na vida. Natural de Córdoba, ele deixou a cidade natal para estudar música em Buenos Aires. No final da década de 1950, estava determinado a dedicar a vida à carreira, mas foi surpreendido por questões práticas de sobrevivência. Seu país passava por crise econômica, o que o colocou diante de uma pergunta decisiva: “Devo continuar?” Ali, percebeu que a música era maior do que tudo. Deixou a Argentina e viajou pela América Latina até desembarcar em São Paulo, em 1962.
“Não é uma profissão fácil. Enfrentamos muitos desafios, é preciso estudar a vida inteira”, diz o bandoneonista. Em 1977, a convite, ele aportou em Belo Horizonte. A professora e pianista mineira Berenice Menegale lhe propôs o desafio de trabalhar na Fundação de Educação Artística. A coragem de transpor fronteiras possibilitou a Rufo fundar a Orquestra Ouro Preto, criar o curso de teatro e música na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e, posteriormente, o mestrado em artes cênicas naquela instituição.
DESCONHECIDO A escritora Marina Colasanti jamais se contenta com a zona de conforto. “Meu projeto é fazer um painel em que cada gênero (literário) retome as inquietações e temas que percorrem a minha vida”, diz. E quais seriam essas inquietações? “O que é o desconhecido? A vida, a morte e até o amor são desconhecidos. Temos que falar para vencer o desconhecido”, responde ela.
Há algo em comum entre a literatura de Marina e as orquestras de câmara. “A diversidade me permite a renovação. Estou sempre atenta a outras formas, outras embocaduras. Saio de um gênero a outro, como um músico faz ao mudar de instrumento”, conta ela.
A escritora questiona a dúvida de Bob Dylan sobre as fronteiras entre canção e literatura. “Para um letrista tão sofisticado como ele, alguém que trabalha com a palavra, é impossível não ter uma preocupação literária. Receber um prêmio é uma preocupação da vaidade, mas a qualidade da expressão é uma preocupação literária”, diz.
Para Marina, as perguntas de todo artista, assim como a pele humana, têm diferentes níveis: algumas ficam na superfície e outras na epiderme. “As questões inquietantes estão em duas camadas. Uma pergunta na superfície e a outra vai por baixo. São ocultas e não verbalizadas”, compara. Para ela, arte é a tentativa de dar respostas a perguntas que, muitas vezes, o autor não tem coragem de fazer a si mesmo..