Acabou a espera. Após dois anos sem poder tomar as ruas de Belo Horizonte no Carnaval, foliões fizeram da capital novamente um espaço de festa, celebração e alegria, sentimentos reforçados pela sensação de libertação da angústia que impediu a saída dos blocos em 2021 e 2022. Além de homenagens às vítimas da pandemia de COVID-19, o primeiro dia de Carnaval em BH foi marcado por mensagens políticas, ambientais e humanitárias que mostraram que há espaço para muitas pautas sem perder a cadência da folia.




O tradicional  'Então, Brilha!' deu início à festa ainda enquanto o céu começava a clarear no Centro da cidade, na esquina da Rua Curitiba com Avenida do Contorno. Com o tema “Sol da Justiça”, uma homenagem à Dona Eliza, compositora da velha guarda do samba mineiro, o bloco arregimentou dezenas de milhares de pessoas com uma bateria formada por mais de 300 participantes e uma banda que embalou os primeiros foliões ao som de axé, MPB e mensagens de respeito e esperança.

Ainda antes do início do cortejo, a Guarda Municipal de BH e a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) fizeram um discurso contra o assédio sexual durante a folia. A iniciativa estimula as denúncias por parte das mulheres que sofrerem agressões durante a festa. 
"Importunação sexual aqui não. Em caso de qualquer ocorrência, a Polícia Civil está preparada para receber a denúncia e fazer a investigação. Um carnaval com segurança para todos", disse uma representante da PCMG.




A lembrança do teor de conscientização durante a festa foi a tônica do bloco. Mateus de Souza, que há três anos participa da bateria do ‘Então, Brilha!’, lembra que o Carnaval é também uma festa com traços políticos. "Esse ano vai ser um ano muito valoroso para essa volta do Carnaval. Nossos corpos também são políticos. Nós estamos aqui como um manifesto", disse.

Sob uma enorme faixa com a mensagem “gente é pra brilhar”, retirada da canção “Gente”, de Caetano Veloso, foliões destacaram a pluralidade da festa com destaque para pautas como a celebração e luta pelo direito da população LGBTQIA +. A organização do bloco também se preocupou em trazer as pessoas com deficiência para dentro da festa.

"É muito inclusivo, protetivo. Apesar dessas mil pessoas, eu me sinto muito seguro". O depoimento é do médico Renato Diniz Silveira, de 56 anos, que vai fazer o seu sexto desfile com o ‘Então, Brilha!’. Em uma ala dentro da corda que separa a banda do público, ele e outras pessoas com mobilidade reduzida festejam em segurança. "O bloco é sensacional. Eles me colocam rapidamente dentro da corda. Às vezes eu até ajudo outras pessoas que estão chegando", elogia.




Serra do Curral


A volta do Carnaval foi também o momento de aproveitar as centenas de milhares de pessoas nas ruas da capital para fortalecer o movimento em defesa da Serra do Curral. O cartão-postal de BH é objeto de interesse de mineradoras que conseguiram, nos últimos anos, permissões do governo estadual para instalação de projetos no local. A escalada da empreitada exploratória na serra se intensificou justamente durante o hiato carnavalesco e os foliões não deixaram a pauta de lado neste primeiro dia de festa.

Durante cortejo no Centro de Belo Horizonte, o bloco ‘Então, Brilha!’ abriu um bandeirão que pede a preservação da Serra do Curral. Sob gritos contra mineração na área verde que contorna parte da capital mineira, milhares de foliões pediram o fim das mineradoras na região.

"Quem não tá sabendo, pois saiba, que a nossa Serra do Curral está ameaçada por um projeto de mineração. Gente é pra brilhar, gente não pra morrer de fome, não morrer de sede", disse Glauco Gonçalves Dias, um dos fundadores do bloco.




Ele lembra que a Serra do Curral, muito mais do que o cartão-postal da capital mineira, é parte da identidade dos belo-horizontinos. "Da mesma forma que a gente defende o nosso Carnaval, porque tem nossa identidade. Também não podemos deixar ninguém acabar com a Serra do Curral. Ninguém tem o direito de tirar nossa identidade", declarou.

O bloco distribuiu adesivos escritos "Mexeu com a Serra do Curral, mexeu comigo" aos foliões. A foliã Cristiane Correia Costa mora em Santa Luzia e reforça a relevância da manifestação. "É muito importante lutar pela Serra. A manifestação é linda, muito importante junto com a alegria, porque o Carnaval também é uma manifestação política", afirma.
 

Na pele, mensagem para combater o assédio durante a folia (Foto: Gladyston Rodrigues /EM/D.A Press)

 

Política na rua


Os anos sem Carnaval foram também marcados por momentos de acirramento no cenário político brasileiro, um clima de tensão que culminou na apertada eleição presidencial de 2022, atos terroristas antidemocráticos no início deste ano e, claro, em um forte discurso político nas ruas que deve se perpetuar ao longo da folia. 




Com bandeiras progressistas e recorrentes críticas à forma como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) lidou com situações como a pandemia e o acesso de garimpeiros às terras Yanomamis, foliões levaram às ruas, mensagens de esperança e alívio pelo fim da última gestão no Palácio do Planalto.

A mensagem de retorno foi central no ‘Tchanzinho Zona Norte”, que desfilou pela manhã no entorno do Mineirão, na Pampulha. Com a temática "a volver" pela volta da democracia e da folia do carnaval, a bateria e os dançarinos comemoram o momento. "Isso aqui tá lindo. Agora, a gente tem mais liberdade para se expressar. Estamos felizes, contentes, e afim de fazer uma festa incrível", disse Leo Lobato, um dos dançarinos do bloco.

Esperança Peixoto, que atua no apoio do bloco desde 2013, explica que o 'TZN', como é conhecido o Tchanzinho Zona Norte, sempre atuou em favor da democracia e dos direitos da população.  Ela fez críticas ao antigo governo federal e até afirmou que o bloco passou por momentos de censura em carnavais passados.




“Sempre foi um bloco ideologicamente político, isso nunca foi deixado de lado. Sempre buscou levantar bandeiras de coletivos, de coisas que são boas pra população: do respeito, do acesso, de oportunidades. Quando era o outro governo, o desgoverno, a gente foi censurado, a gente foi cerceado. Por vezes, a polícia interferiu no desfile, porque a gente não podia falar determinadas palavras”, disse.
 
 

Dois anos longe das ruas, blocos levam mensagem de reconstrução (Foto: Leandro Couri /EM/D.A Press)

 

Favela em destaque


O sábado também foi dia de ‘Seu Vizinho’, bloco nascido no Aglomerado da Serra, Centro-Sul de BH saiu da Avenida Mem de Sá com um desfile marcado por mensagens de orgulho, representatividade e pela inclusão da pauta antirracista em meio aos festejos carnavalescos. O cortejo teve discurso político voltado à população negra e periférica e foi coroado por fumaça, papel picado e lágrimas de alegria.

A emoção dos foliões foi a tônica durante o cortejo que reuniu pessoas de todas as idades. O verso “Tudo que nóis tem é nóis”, trecho de ‘Principia’, canção de Emicida, foi tomado como mantra pelo bloco e levou os participantes da festa às lágrimas em meio a uma chuva de papéis amarelos picados, referência ao álbum do rapper paulistano que leva o nome da cor.




Victor Hugo Souza, de 22 anos, fotógrafo do bloco, não segurou a emoção durante a apresentação. “É uma questão de identificação, é um momento em que a gente se enxerga muito. A gente pensa em quem vem antes de nós, nossos pais, nossos avós. Eu sempre me emociono muito, nos ensaios, mas agora, assim, foi o ápice da emoção. É um bloco de favelas, para pessoas faveladas e é isso. Não tem discussão”, explicou.

Melina da Rocha, 35 anos, destacou que o ‘Seu Vizinho’ tem como objetivo mostrar que a favela é mais do que uma parcela da população julga. “Eu compus o primeiro texto do bloco. Tem a ver com a gente ser reivindicado não só como favelados, mas como pessoas que pensam, que sentem, produzem. Esse bloco tem a ver com a gente ser a gente”.

Érica Lucas, 48 anos, do grupo de teatro Morro em Cena, afirmou que o momento é de alívio e alegria após um período difícil vivido nos últimos anos. “É uma emoção absurda saber que depois da mágoa que a gente viveu, da pandemia, deste desgoverno que acabou de sair, a gente está aqui de novo. Com a energia renovada. Com a esperança renovada, com a emoção. Esse carnaval está trazendo essa carga muito maior desse sentimento. É a resistência”.




O discurso político, inclusive, apareceu em diversos momentos do bloco, principalmente com críticas ao ex-presidente Jair Bolsonaro e exaltação ao atual presidente Lula e a sua Secretária de Cultura, Margareth Menezes. 

Figuras públicas estiveram presentes no evento, como o rapper Djonga e os políticos Áurea Carolina (PSOL) e Léo Péricles (UP). Léo, que foi candidato à presidência da república em 2022 pelo Partido Unidade Popular, inclusive segurou um cartaz que fazia críticas ao Governo Romeu Zema e a sua gestão em relação à preservação da Serra do Curral.

Segundo Léo, a emoção se fez tão presente no Seu Vizinho pelo papel de resgate do carnaval para o povo que o bloco assume. “Eu acho que esse bloco é fundamental pois ele resgata um princípio do Carnaval que é ser extremamente popular, ancorado nas periferias. O Carnaval é do povo, feito pelo povo, para o povo”.





Vítimas do coronavírus homenageadas


Após quase 700 mil mortes causadas pela COVID-19, o Carnaval deste ano foi também o momento em que muitos foliões recordaram entes queridos que foram vitimados pela doença. A recordação da pandemia, que interrompeu a folia por dois anos, foi motivo de emoção para quem perdeu parceiros de vida e de festa, mas tem na celebração, motivos para reviver boas lembranças.

Na abertura do Carnaval belo-horizontino, o ‘Então, Brilha!’ dedicou um momento do cortejo para homenagear as vítimas da pandemia, que matou quase 7 mil pessoas em BH. Ao som de "Eu quero é botar meu bloco na rua", música de Sérgio Sampaio, os músicos lembraram de dois integrantes da bateria que faleceram por causa do vírus. A bateria colocou fotos dos amigos nos instrumentos musicais, como forma de eles se manterem presentes na primeira apresentação do bloco nas ruas, desde 2020.

"A gente manda um axé especial para onde quer que eles estiverem. Ricardo e Sidney, dois integrantes do nosso bloco, queridos, que se foram na pandemia", declarou Michelle Andreazzi, vocalista do bloco.




A filha de Ricardo, Laura Domingos, de 25 anos, se emocionou com a homenagem. "Estou até sem palavras. Sentir a presença dele com a gente está sendo incrível. Esse carnaval está sendo muito diferente sem ele, ainda dói muito", contou à reportagem do Estado de Minas.

Para ela, o pai deixou um legado no Carnaval de BH, que jamais será esquecido. "Ele começou no início, quando o Carnaval de BH nem era tão famoso. Participava de todos os blocos; ele era muito especial mesmo. É um sonho estar vivendo tudo isso depois da pandemia, que não sabíamos se seria possível", disse.

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