Cinema Orly Quando estreou na ficção com 'Cinema Orly', Capucho não pediu licença ao literato que poderia ser, e fez de sua condição extrema verdade humana sem contemplações, um espetáculo despido de qualquer artifício – sobretudo se considerarmos que o gênero atende todas as vozes (prosa, poesia, teatro) e, no entanto, raramente consegue se despir de uma afetação inversamente proporcional à literatura feita por machos que pensam em fêmeas durante 24 horas por dia. Esse surpreendente escritor arquitetou sua narrativa como se a beleza fosse o blefe que, aliás, a beleza costuma ser. Um capricho, uma convenção confortável.
Do aparente voyeurismo parte-se para a pegação, ninguém é de ninguém e nem por isso todos são de todos. Há rígidos códigos de conduta, e quem os rege é a legitimidade que só o desejo individual sustenta. Dessa forma, 'Cinema Orly' tem a tensa e densa atmosfera de um inferno. Entretanto, é o paraíso do qual o frequentador quase diário não consegue se afastar.
O que marca, fundamentalmente, nesse romance de estreia é a linguagem. Luís Capucho não quer nem saber. Diz tudo o que sente e pensa com todas as letras, todas as palavras, numa espécie de acintoso despudor que, na forma e no fundo, nada mais é que a poesia (ainda que negra) de uma prosa que goza em dissolver-se no mais brutal dos lirismos. Estilo de quem, por absoluta coragem, não tem razões para usar o freio numa hora tão reveladora.
Rato Morando numa cabeça de porco, expressão carioca para cortiço, o narrador e a mãe (no segundo volume, elementos autobiográficos são tão evidentes que até nos parece frágil dar-lhe o nome de literatura de confissão) foram deixados administrando uma casa onde se alugam quartos para os sujeitos menos recomendáveis. A mãe de Luís – sim, eis uma autoficção e, assim, o narrador só pode mesmo ter o nome do autor e viver, talvez com algumas outras palavras, o que este vive –, a mãe de Luís, fundamental que se frise, é uma figura quase anódina não fosse a generosidade de uma alma jamais invasiva. O protagonista se perturba, página a página, ante a visão de homens que espia ensaboando-se no banheiro e, até nesse caso, sente o peito estilhaçar-se ainda que frente a figuras decadentes, distraídas, ausentes mesmo, desde que possa entrever nelas – ou adivinhar, pela fantasia – um sexo talvez disponível.
Trata-se do melhor livro de Capucho, o mais bem-estruturado e escrito. Nele, a fluência da linguagem coleia menos, segue rumo mais direto. Nele, enfim uma relação de namoro se dá. O afeto não se perde na milleriana disposição esfaimada para o gozo (o Henry Miller dos anos 1960). Em 'Cinema Orly', os frequentadores anônimos na penumbra do cinema eram chamados de répteis. Aqui, são ratos que ocupam a cabeça de porco até que mãe e filho acabem enxotados do próprio negócio e vão morar num porão cedido pela compreensão de um amigo.
Ironicamente, nesse livro não se faz presente nenhuma espécie de ressentimento. Os que levam a vida ou a vida a levar aqueles que nela estão à mercê, cavando suas oportunidades, são da mesma natureza. Ratos. Uma ninhada. Mas só um deles tem voz para contar.
Mamãe me adora No terceiro e mais recente livro de Capucho, o drama da Aids, do coma sofrido e do qual se recuperou não sem sequelas (mancando de uma perna, a dicção comprometida), os limites entre o que é narrado e as vivências do escritor definitivamente provam que estavam dissolvidos desde o livro de estreia. Mais poético que 'Rato', mais liberto que 'Cinema Orly', 'Mamãe me adora' é novela para a qual é fundamental ir-se de alma aberta. Atravessa-a, quase metade dela, uma viagem do Rio de Janeiro a Aparecida do Norte. A mãe fez 75 anos. O filho nota os primeiros sinais de cansaço dela, sua decadência física. Talvez familiarizado com a própria, tornou o imenso amor que sente pela mãe uma forma de força adicional que, esta sim, o ajuda a auxiliá-la com o peso de uma existência, quando sempre quem o carregou foi ela – e o peso dos dois.
A descrição da viagem de ônibus: os inúmeros fatos que a compõem, desde os passageiros, o motorista sedutor, a mãe e seu alheamento crescente, os campos em redor, as cidades por que passam à margem, as rodoviárias com pausas para eventuais lanches, e destacadamente a figura de Nossa Senhora Aparecida, encontrada no mar por pescadores e, desde então, figura mítica ligada às águas.
Quando ao final chegam à cidade, descem antes da última parada para acompanhar a procissão. A mãe leva um tombo. Nem o narrador nem o leitor dão-se conta; tudo parece tão somente um acidente de percurso, uma trapalhada em meio à multidão somada à sensibilidade, tocada agora de outra forma.
No hotel, destinados ao quarto dos fundos, são convidados por um casal com quarto de frente para a catedral e os romeiros. Assistem a tudo. Até a manhã seguinte, quando, sem tomar o café da manhã, a mãe inapetente respeita apenas o horário de seus remédios. A seguir, vão ver a imagem da santa. Banhados de luz que naturalmente é filtrada pelos vitrais, mas que, para Luís e a figura materna, representa a aura de algo mais. Ele declara acreditar em tudo, tudo, tudo. Menos em Deus.
Em tudo, tudo, tudo. Menos em Deus.
A mãe lhe pede que compre umas velas. Ele sai apressado. Na volta, já a encontra agonizante, os olhos sem vida. Pede ajuda, numa das cenas mais marcantes da literatura contemporânea. O impacto reside na cena propriamente, e não caberia aqui reproduzi-la.
Lida em retrospecto, a sensação que nos dá é que a literatura de Capucho se liquefez. Que ele buscou sempre o sumo onde tantos outros inventaram amores, deuses, tramas e até personagens que os superassem. Luís declarou em dois de seus três livros: “Sou um fodido”. Despido de medo, enriqueceu uma literatura acovardada, viciada em se esconder em performances por meio das quais sempre acreditou dizer enfim a sua verdade. Não era.
Paulo Bentancur é escritor e crítico
CONFIRA
. CINEMA ORLY
Editora Interlúdio
144 páginas, R$ 56
. MAMÃE ME ADORA
Editora Vermelho Marinho
120 páginas, R$ 36
. RATO
Editora Rocco
128 páginas, R$ 26
Distribuição do autor. Informações: luiscapucho11@gmail.com