Em Cannes, no ano passado, a diretora e corroteirista (com Jacques Fieschi) Nicole Garcia contou, na coletiva de Um instante de amor, o que a atraiu no livro, breve e conciso, de Milena Agus. “Foi a própria natureza de Gabrielle (a personagem), mulher feita desejo que não se reprime e reza a Jesus pedindo que lhe dê la chose principale (a coisa principal). A expressão mexeu comigo. Essa coisa é o sexo, mas também é sagrada. Nós, mulheres, não somos estimuladas, na vida social, a externar nosso desejo, e menos ainda dessa maneira franca e direta.” E a atriz Marion Cotillard – “Gabrielle é meu papel mais incandescente. Nunca havia interpretado uma mulher como ela, que ‘queima’ com tanta intensidade”.
“Apesar de toda a evolução dos costumes, vivemos num mundo que ainda é masculino”, diz a diretora. “Um homem falar sobre o seu desejo, nomear a vagina de uma mulher está na ordem natural das coisas. Gabrielle rezar pelo sexo e nomeá-lo como a coisa principal subverte o mundo matriarcal, mesmo que seja sua mãe no comando.” Gabrielle passa a incomodar. É louca. A mãe lhe apresenta seu ultimato – um casamento de conveniência ou a internação.
The Hollywood Repórter, elogiando o filme de Nicole Garcia, expressou a incompreensão de que ele foi vítima em Cannes. A revista falou no romantismo delirante, no classicismo de bom gosto. Se Um instante de amor – que está sendo lançado no Brasil hoje – é clássico e romântico isso é só uma aparência.
O relato em flash-backs, o antinaturalismo das interpretações e a crueza de certos diálogos e situações, tudo aponta para o sentido inverso. De resto, Nicole já inicia seu filme em alta voltagem. Gabrielle, sem calcinha, refresca seu sexo na água corrente do rio. Louca de amor, ou por sexo? É curioso que os dois homens pelos quais Gabrielle arde, o professor e, depois, o militar, lhe deem livros. E Nicole Garcia disse uma coisa essencial: “Gabrielle quer ser vista e lida por um homem. No fundo, tenho a impressão de que também é o que eu quero, como artista. Ser lida e reconhecida de uma maneira que eu mesma não consigo fazer.”
casamento Teria conseguido ser vista, ser lida como faz Gabrielle, no leito – O morro dos ventos uivantes, o romance cult de Emily Brontë? Na trama, Gabrielle casa-se, para fugir à internação, com José. É um trabalhador espanhol que foge à ditadura de Franco. O filme passa-se nos anos 1950, quando a França está atolada na Guerra da Indochina. Ao marido, Gabrielle antecipa que ele será infeliz. Não o ama, não vai dormir com ele. José, cuja casa foi queimada na Guerra Civil, é homem de poucas palavras. Fala pouco, e quando o faz diz coisas certeiras. José, ao aceitar o arranjo, sonha com a casa, que constrói. E, para satisfazer seu desejo, vai às prostitutas. Com ele, Gabrielle faz sexo, mas cobra.
Gabrielle engravida, aborta. É diagnosticada com pedras nos rins. Vai fazer tratamento numa clínica – e conhece André, o militar, que preenche suas fantasias. “Obrigado, Jesus.” Com ele, Louis Garrel, terá a noite sonhada de sexo. Um plano, e um só. Gabrielle, que sonha com a penetração, contorce-se no leito, revira os olhos. Marion fica feia, se isso é possível.
Qualquer que seja o nome do sofrimento de sua heroína – erotômana? –, Nicole Garcia disse o que não gostaria “que tudo isso fosse reduzido a um mal físico, a uma doença”. No final, vem a revelação que muda tudo. E agora, José? O personagem de Alex Brundemühl... Olha o spoiler. Nicole Garcia cita François Truffaut. Um diretor muitas vezes só descobre sua motivação ao ver o filme pronto. O elemento escondido e autobiográfico. Foi assim com ela – “Em Gabrielle, reencontrei uma coisa muito minha, a importância do imaginário”. (Estadão Conteúdo)